Ouça a matéria na íntegra de Désia Souza.
É na Almirante Barroso, uma pequena rua que cruza a movimentada Olegário Maciel. Uma edificação construída com doações, tijolo a tijolo e bem aos pés do Morro do Cristo. Ali, há 50 anos funciona a Casa do Caminho. Em uma janela bem acima do Lar do Caminho, uma meia luz. É ali que vive hoje dona Isabel Salomão. Um quarto ao lado do terraço onde cultiva o jardim. Ao lado do filho Iriê e da nora Alda. Recolhida, um dos maiores nomes do Espiritismo no Brasil, aos 100 anos em 22 de setembro, vive cercada pelo amor da família e por cuidadoras devido ao seu estado de saúde. Ainda lúcida, é por baixo de seus olhos e seu corpo material, que convive com a riqueza de seu legado.
A menina que aos nove anos viu, pela primeira vez, o rosto de um idoso na janela da fazenda onde morava com seus pais. Àquela época, ela não sabia explicar o porquê era diferente e chamava suas visões de “coisas”. A nomenclatura mudou para espíritos quando, aos pouco mais de 20 anos, a moça que já trabalhava fora em um mundo dominado por homens, descobriu a doutrina espírita por meio de um colega de trabalho. A partir dali, ela começou a frequentar reuniões em centros espíritas e não saiu mais. Descobriu que aquela primeira face era do doutor João de Freitas, o mentor espiritual que a acompanharia por toda a jornada.
Em uma das seções, ao sentir os braços pesados ao acudir um fiel, lhe foi atribuído o poder da cura. Mal sabia ela que, lá nos tempos da fazenda, ao abraçar o pai após um ataque epilético, havia operado a primeira cura de sua vida. Mas, mesmo para uma menina que aos 14 anos sentou à mesa do prefeito para exigir a criação de uma escola rural, mobilizou e criou a primeira escola em dos quartos da própria casa, entender aquele segundo mundo ainda não fazia parte da sua consciência humana.
Isabel Salomão inspirou a primeira biografia de Daniela Arbex
A grandiosidade dessa história, a dos dois mundos de Isabel, também foi contada pela premiada jornalista e escritora Daniela Arbex. Esse expoente nome no cenário editoral nacional, viu seu dom e sua humanidade serem despertados na Casa do Caminho, lugar que frequenta desde os 15 anos de idade.
“O tempo é uma grandeza física. Tão raro alguém que consiga marcar o tempo e a Dona Isabel marcou o nosso tempo. E ela vai ficar para a eternidade porque ela é uma mulher pioneira em tudo, pioneira na divulgação do espiritismo, pioneira em relação à voz da própria mulher,”, comenta a escritora.
De casa cheia à multidão
O menino Iriê, o terceiro dos cinco filhos de Isabel, achava a casa dos pais no bairro Santa Terezinha sempre cheia na infância. Era comum que o local reunisse, quase sempre, umas 15 pessoas em busca de ajuda.
Depois do atendimento em casa e em outros centros espíritas da cidade, Isabel e o marido Ramiro, também espírita, viram a necessidade de construir um próprio local. A partir daí, os números aumentaram consideravelmente. Multidões, de grande parte do Brasil, vinham em busca da palavra, passes, tratamento e cura espiritual. A Casa do Caminho também recebeu vistas ilustres, como a de Chico Xavier.
No anexo ao lado, foi montado um lar para meninos, aqueles que não podiam contar com o aconchego da própria família. Foram mais de 500 vidas atendidas no lar, que também se tornou escola e onde hoje funciona uma creche.
Vivendo de doações, a Casa do Caminho também exerce o seu papel social – nos anos 2000, eram seis toneladas de mantimentos distribuídas mensalmente para famílias carentes. Hoje, as doações mensais são feitas para duas instituições de longa permanência para idosos – o Lar Doutor João de Freitas e o Abrigo Santa Helena.
E foi nessa rotina do dia a dia que Iriê Salomão, hoje aos 70 anos, relembra de um dos grandes ensinamentos que ali aprendeu para a vida, com o ex-preso político da ditadura militar, o sindicalista Clodesmith Riani que, em uma de suas visitas, encontrou na Casa do Caminho, em uma situação de extrema dificuldade de saúde, o seu próprio carcereiro.
“Ele começou a chorar e pedir desculpas. O Senhor Riani falou ‘meu amigo, deixa pra lá. O Cristo é maior, o Evangelho é maior.” relembra Iriê. “Foi o maior exemplo de perdão que eu vi na minha vida. A minha casa sempre foi assim. Eu vivi e vivo em um mundo que não tem fronteira, que não tem preconceito. Minha mãe sempre me disse: faça o bem, não importa a quem. Ame o seu próximo”, finaliza.
A rotina no lar e a verdade da vida
Há mais de 40 anos na família, a nora Alda Marta de Oliveira Salomão de Campos, esposa de Iriê, que convive no dia a dia na instituição e na vida íntima de dona Isabel fala sobre o legado deixado por essa grande mulher. “A vida dela é exatamente o que ela se propunha. Aquele amor, aquele acolhimento, aquele entendimento de vida é colocado em prática no dia a dia. Uma palavra que sempre mostrava qual que é a informação, o ensinamento que Jesus trouxe para nós.” destaca Alda.
Mensagem que perdura
Mirna Salomão Marques, sobrinha de dona Isabel e vice presidente da Casa do Caminho, explica que as atividades continuam com as reuniões do Centro Espírita, frentes de estudos, trabalho assistencial e o pronto socorro espiritual 24 horas, que acolhe, por telefone, pessoas em busca de aconselhamento e socorro.
Com um rico acervo de áudio e vídeo, Dona Isabel, há décadas, teve a intuição de gravar vídeos com mensagens que hoje são disseminadas para todo o mundo, pelo canal do YouTube.
“Toda a intenção, todo o propósito é de compartilhar com as pessoas as verdades espirituais que fizeram bem na vida dela. Aquilo que transformou a vida dela para o bem, é isso que ela quer compartilhar.” pontua Mirna.
A prova de que a força, a palavra e a entrega se disseminam muito além do corpo físico.