Milton Nascimento se despede dos palcos em noite de pureza e melancolia

Milton Nascimento parecia não acreditar no que via. Com o olhar perdido no horizonte ele mirava o céu tomado por fogos de artifício enquanto uma multidão se acotovelava à sua frente. A presença transcendental do mítico músico de 80 anos era suficiente para gerar comoção. Ele nem precisava cantar.

A voz que assombrou o mundo nas décadas de 1960, 1970 e 1980 principalmente, e que chegou a ser comparada à própria divindade suprema por Elis Regina (1945-1982), estava ali como uma sombra, inexata, esmaecida, mas ainda assim acompanhando o homem vestido com um bela manta bordada, inspirada em Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), que resolveu assumir a cabeça raspada, e que tinha os olhos marejados de quem chega ao percurso final de sua trajetória. Era a última apresentação de “A Última Sessão de Música” de Milton.

As músicas que a voz de Milton já não alcançava eram cantadas por Zé Ibarra, jovem músico que o acompanhou durante toda a turnê, e, em especial, pelo público. A banda potente e afiada o protegia. O que se estava ali celebrando não era um show ou um homem, mas toda uma trajetória, todo um percurso, toda uma continuidade de tempo iniciada muito antes, nos idos dos anos 1960, quando o Brasil ainda enfrentava uma feroz ditadura, tudo perpassado por memórias, lembranças, reminiscências.

Milton

Ali era a coroação, mas se estendia para muito além do último ato. Por isso a presença de Milton se amparava em vozes tão diversas e dissonantes que formavam o coro popular. Ao longo de uma carreira agraciada pela exaltação da crítica e pelo carinho do público, o músico se inscreveu como uma espécie de emblema musical da Humanidade, em especial de Minas e dos mineiros, sua gente e seu povo, com sincero ardor.

O que explica o fato de que, quando as pessoas olhavam para Milton, elas não enxergavam um senhor de 80 anos com todas as conjecturas da idade, mas, naquele homem negro e com seu jeito quieto de expressar sabedoria, as próprias lembranças e memórias, como uma espécie de espelho prismático: a cada luz rebatida, a cada música, uma lembrança se iluminava.

Foi assim do primeiro ao último ato. Havia, ao mesmo tempo, uma pureza e uma melancolia, decorrentes da própria obra de quem se despedia. Essas características formam o cerne da música de Milton, com sua perspectiva barroca e atemporal. A pureza vem de um tempo de infância, com coros infantis e referências ao universo das crianças, e é, ao mesmo tempo, lembrança de um tempo perdido, que se busca e não se recupera, por isso melancólico, ou feito dessa resignada tristeza.

O que cativa o público é que no meio de tanta morte, luto e despedida, a esperança surge renhida, fiada na amizade e num amor inocente, até pueril… Ou como o próprio Milton descreve em “Outubro”, parceria com Fernando Brant: “Ah, jogar o meu braço no mundo/ Fazer meu outubro de homem/ Matar com amor essa dor/ Vou fazer desse chão minha vida/ Meu peito é que era deserto/ O mundo já era assim/ (…) Minha história está contada/ Vou me despedir…”.

texto: Raphael Vidigal